domingo, 21 de maio de 2017

Metafisica do sexo — Delimitação do assunto



O  título  deste  série de texto  exige  um  esclarecimento  no  que  respeita  à        palavra
«metafísica». Esta palavra será utilizada aqui num duplo sentido. O primeiro é assaz corrente em filosofia onde, por «metafísica», se entende a investigação dos  princípios e dos significados últimos. Uma metafísica do sexo será pois o estudo daquilo que, de um ponto de vista absoluto, significam quer os sexos, quer as relações neles baseadas. Uma tal procura tem poucos antecedentes. Citado Platão, e se abstrairmos de certos apontamentos possíveis de encontrar em autores próximos da época da Renascença, das teorias de Boehme e de alguns místicos heterodoxos nele inspirados, até Franz von Baader, acabaremos por chegar a Schopenhauer, após o qual se poderá apenas mencionar Weininger e, em certa medida, Carpenter, Berdiaeff e Klages. Nos tempos modernos e, sobretudo, na atualidade, multiplicaram-se endemicamente os tratados sobre o problema dos sexos considerados dos pontos de vista antropológico, biológico, sociológico, eugênico e, por fim, psicanalítico; criou-se igualmente um neologismo para as pesquisas semelhantes — a «sexologia»; mas tudo isto pouco ou nada tem que ver com uma metafísica do sexo.

Neste domínio, como em qualquer outro, a procura dos significados últimos não interessou os nossos contemporâneos, ou pareceu-lhes vaga e ultrapassada. Pensou- se atingir algo de mais importante e de mais sério limitando essa procura, pelo contrário, ao plano empírico e mais estritamente humano, isto quando a atenção se não concentrou nos subprodutos patológicos do sexo.

Em grande parte, estas observações são também válidas para os autores de ontem e de hoje que trataram mais do amor do que especificamente do sexo. Limitaram-se eles essencialmente ao plano psicológico, bem como ao da análise  geral dos sentimentos. Até aquilo que escritores como Stendahl, Bourget, Balzac, Solovieff e Lawrence publicaram a este respeito pouco se aplica aos significados mais profundos do sexo. De resto, a referência ao «amor» — dado o que hoje se entende principalmente por esta palavra, e ainda o desgaste de ordem sobretudo sentimental e romântica a que é sujeita na maioria das experiências correspondentes — não  podia deixar de criar um equívoco e restringir a pesquisa a um domínio estreito e de certo modo banal. Somente aqui e além, e nós diríamos mesmo, quase por acaso, foi possível aproximarmo-nos daquilo que se liga à dimensão em profundidade, ou dimensão metafísica do amor nas suas relações com o sexo. Mas no presente estudo a palavra «metafísica» será considerada também num segundo sentido relacionado com a sua etimologia, dado que, literalmente, «metafísica» significa a ciência daquilo que está para além do físico. Apenas este «para além do físico» não dirá respeito   a


conceitos abstratos ou a idéias filosóficas, mas sim aquilo que poderá resultar como experiência não somente física como transpsicológica e transfisiológica duma  doutrina dos estados múltiplos do ser, duma antropologia que não se detém, como a dos tempos mais recentes, ao simples binômio alma//corpo, mas antes conhece as modalidades «subtis» e mesmo transcendentes da consciência humana. Domínio desconhecido para a maioria dos nossos contemporâneos, uma consciência deste gênero foi contudo parte integrante das disciplinas antigas e das tradições dos povos mais diversos.

Será dela, pois, que extrairemos os pontos de referência para uma metafísica do sexo tomada no seu segundo sentido: como verificação de tudo quanto na experiência do  sexo  e  do  amor  comporta  uma alteração do nível da   consciência
«física», e até por vezes uma certa suspensão do condicionalismo do Eu individual e a emergência momentânea ou a inserção na consciência de modos de ser de caráter profundo.

Que se estabeleça na experiência do eros um ritmo diferente, que uma corrente diversa invada e transporte ou suspenda as faculdades normais do indivíduo  humano, que se abram comportas sobre um mundo diferente — tudo isto foi observado ou pressentido em todas as épocas. Mas naquelas que estão sujeitos a tal experiência falta quase sempre uma sensibilidade subtil, desenvolvida de modo a poder colher qualquer coisa mais do que as simples emoções e sensações que os dominam; falta-lhes a base para se poderem orientar nos casos em que se esboçam as deslocações de nível a que acabamos de aludir.

Em seguida, e quanto àqueles que fazem da experiência do sexo um estudo científico, referindo-se a outros e não a eles próprios no que respeita a uma metafísica do sexo, tomada neste segundo sentido particular, as coisas não se passam de melhor forma. As ciências susceptíveis de fornecer  referências necessárias à exploração dessas dimensões potenciais da experiência do eros perderam-se quase completamente. Faltaram assim os conhecimentos indispensáveis para identificar, em termos de realidade, os conteúdos possíveis do que é  geralmente tomado «de um modo irreal», reconduzindo o não-humano a prolongamentos exaltados do que é somente humano, paixão e sentimento, de modo a fazer unicamente poesia, lirismo, romantismo idealizante e a diminuir o valor de tudo o resto.

Estas observações referem-se ao domínio erótico, que poderemos chamar profano, o qual é quase o único que o homem e a mulher do Ocidente moderno conhecem, e o que é considerado pelos psicólogos e sexólogos atuais. Poderá acontecer que, nos significados mais profundos que iremos indicar no amor em geral até ao ato brutal que o exprime e finaliza, nesse ato em que, como disse alguém, se forma um ser múltiplo e monstruoso e em que se diria que homem e mulher


procuram humilhar-se, sacrificar tudo o que neles há de belo (Barbusse) — poderá acontecer que a maioria se não reconheça e creia haver da nossa parte interpretações fantasistas e arbitrárias, pessoais, de caráter abstruso e «hermético».

As coisas poderão parecer assim unicamente a quem toma como absoluto o que em geral vê cada dia à sua volta ou experimenta em si próprio. Porém o mundo do eros não começou hoje, e basta dar uma vista de olhos à história, à etnologia, à história das religiões, à misteriosofia, ao folclore, à mitologia para nos apercebermos de formas de eros e de experiência sexual nas quais se reconheceram e consideraram possibilidades mais profundas, nas quais significados de ordem transfisiologica e transpsicologica como aqueles que adiante mencionaremos foram suficientemente postos em relevo. As referências deste gênero, bem documentadas   e concordantes nas tradições de civilizações assaz diferentes, bastarão para afastar a idéia de que a metafísica do sexo seja pura fantasia. Será outra a conclusão a tirar: deverá antes dizer-se que, como por atrofia, os aspectos bem determinados do eros se tornaram latentes a ponto de serem quase indistinguíveis na grande maioria dos casos; e que no amor sexual corrente não restam deles senão vestígios e indícios. Assim, para os fazer sobressair, será necessária uma integração, ou seja, uma operação análoga àquela que em matemática consiste na passagem do diferencial para o integral. Com efeito, não é verossímil que nas formas antigas indicadas, frequentemente sacrais e iniciáticas, do eros tenha sido inventado e acrescentado o que era totalmente inexistente na correspondente experiência humana; não é verossímil que dela se tenha feito um uso para o qual de modo algum se prestava, nem sequer virtualmente ou em princípio. É, por conseguinte, muito mais verossímil que, com o tempo, esta experiência se tenha em certo sentido degradado, empobrecido, obscurecido e atrofiado na grande maioria dos machos e fêmeas pertencendo a um dado ciclo de civilização e essencialmente orientados para a materialidade. Disse-se muito acertadamente: «O fato de a humanidade fazer   amor
como faz quase tudo, isto é, estúpida e inconscientemente, não impede que o seu mistério continue a manter a dignidade que lhe corresponde (1).» Assim será inútil afirmar  que    a  titulo  excepcional,  e  se  for  caso  disso,  se  referirão     certas
possibilidades e certos significados do Eros. São justamente essas exceções de hoje (as quais, de resto, e como já dissemos, se vão integrar no que, em outros tempos, apresentava este caráter num grau reduzido) que nos fornecem a chave para a compreensão do conteúdo potencial profundo e também do não-excepcional e do profano inconsciente. C. Mauclair, que no fundo tinha apenas em vista as variedades duma paixão de caráter profano e natural, afirma muito justamente que «no amor fazem-se os gestos sem refletir, e o seu mistério é apenas evidente para uma pequena minoria de seres... Na multidão imensa de seres com forma humana, muito poucos  são  homens  e,  nesta  seleção,  pouquíssimos  aqueles  que  penetram   no





1  S. PELADAN, La science de l'amour, (Amphithéâtre des Sciences Mortes), Paris, 1911, pág. 102.


significado do amor» (2). Neste domínio como em qualquer outro o critério estatístico do número é destituído de qualquer valor. Podemos deixá-lo à banalidade de um método como o que foi utilizado por Kinsey nos seus conhecidos relatórios acerca do
«comportamento sexual do macho e da fêmea na espécie humana». Num trabalho como o nosso é o excepcional que poderá valer como «normal», no seu sentido superior.

Partindo desta premissa poderemos já delimitar os domínios sobre os quais irá incidir a nossa análise. O primeiro será o da experiência erótico-sexual em geral, ou seja, do amor profano tal como poderão conhecer um qualquer Manuel e uma qualquer Maria, para procurar desde logo nessa experiência os «índices intersticiais» de qualquer coisa que virtualmente ultrapassa o simples fato físico e sentimental. O estudo pode começar por um sem-número de expressões constantes da linguagem dos amantes e pelas formas típicas do seu comportamento. Esta matéria é-nos já fornecida pela vida quotidiana. Não teremos mais do que considerá-la sob uma nova luz para obtermos interessantes elementos indicativos daquilo que nos parece mais estereotipado e mais banal.

Ainda no que se refere à fenomenologia do amor profano, é possível colher mais material nos romancistas e nos dramaturgos: sabemos que na nossa época as suas obras têm tido por objeto quase exclusivo o amor e o sexo. Podemos efetivamente admitir que, a seu modo, esta produção tem também um certo valor de testemunho, de «documento humano», pois em regra uma experiência pessoal realmente vivida constitui a matéria-prima da criação artística. O que esta nos oferece além disso, justamente por ser arte — no que faz sentir, dizer ou fazer aos diferentes personagens — nem sempre se reduz a uma ficção ou a uma fantasia. Pode, ao contrário, tratar-se de integrações, de amplificações e de intensificações em que se põe mais distintamente em evidência o que na realidade — na experiência pessoal  do autor ou de outros — se apresentou somente de um modo incompleto, mudo ou potencial. Neste aspecto podemos encontrar na arte e no romance uma ou outra matéria a ser considerada, objetiva ela própria e que frequentemente diz respeito a formas já diferenciadas do Eros.

A procura de material esbarra, pois, com dificuldades particulares no que se refere aos dados relativos a um domínio importante do nosso estudo, ao domínio dos estados que se desenvolvem nos pontos-limite, da experiência erótico-sexual, isto é, durante o ato sexual. A literatura oferece-nos aqui muito poucos elementos. Num passado ainda próximo existia o veto do puritanismo. Porém, até nos romances mais ousados o que é banal e vulgar prevalece sobre a matéria eventualmente utilizável para os nossos fins.





2  C. MAUCLAIR, La magie de l'amour, trad. it., págs. 162-163.


Mesmo na literatura pornográfica clandestina se pode recolher bem pouco. Fabricada essencialmente para excitar os leitores, ela é terrivelmente descolorida  para aquele que observa não os fatos, as cenas descritas, mas as experiências interiores que a eles correspondem; o que, no entanto, se compreende por estar geralmente privada de qualquer autenticidade.

Quanto à recolha direta de material, deparamos com uma dupla dificuldade — subjetiva e objetiva. Subjetiva, porque não só com os estranhos mas até com o próprio companheiro masculino ou feminino nos repugna falar com exatidão e sinceridade do que sentimos nas fases mais exaltadas de intimidade física. A dificuldade é também objetiva, pois essas fases correspondem frequentemente a formas de consciência reduzida (e é lógico que na maioria das  pessoas  assim suceda) a ponto de acontecer, por vezes, não nos lembrarmos do que sentimos e até mesmo do que dissemos ou fizemos nesses momentos, quando eles atingem o seu ponto culminante. Com efeito, pudemos verificar que os momentos culminantes de êxtase ou de arrebatamento da sexualidade constituem muitas vezes soluções de con-continuidade mais ou menos profundas da consciência dos amantes, estados dos quais voltam a si como que aturdidos; ou então aquilo que é simples sensação paroxística e emoção acaba por tudo confundir.

Graças à sua profissão, os neurologistas e os ginecologistas poderiam encontrar- se numa situação extremamente favorável para recolher material útil, se soubessem orientar-se e interessar-se por coisas desta ordem. Porém, tal não sucede. A escola positivista do século passado chegou, com extremo bom gosto, a publicar reproduções fotográficas dos órgãos genitais femininos para estabelecer correspondências bizarras entre mulheres delinqüentes, prostitutas e mulheres de populações selvagens. Em compensação, não parece ter apresentado qualquer interesse uma recolha de testemunhos de base retrospectiva sobre a experiência íntima do sexo. De resto, quando neste domínio intervém uma atitude com pretensões científicas «sexológicas», os resultados são, em geral, ensaios de uma incompetência por de mais grotesca: neste como noutros casos a condição prévia para compreender uma experiência é, com efeito, ter dela um conhecimento próprio. Havelok Ellis (3) observou precisamente que «as mulheres que escrevem livros sobre estes problemas (os problemas sexuais) com seriedade e sinceridade são muitas vezes as últimas pessoas às quais nos dirigiríamos como representantes do seu sexo; aquelas que mais sabem são as que menos escrevem». Diríamos mesmo:  são aquelas que nunca escreveram — e isto será igualmente válido para homens.

Finalmente, a propósito do domínio do Eros profano, e para o objetivo que pretendemos atingir, até a disciplina mais recente que fez do sexo e da libido uma espécie  de  idéia  fixa,  ou  seja,  a  psicanálise, pouco  nos  adianta,  tal  como  já o




3  HAVELOK ELLIS; Studies in the psychology of sex, v. III, Filadélfia, 1909, p. VII.


dissemos. Somente nos poderá oferecer, aqui e além, algumas indicações úteis. Em geral, as suas pesquisas estão logo à partida defasadas devido aos preconceitos de escola e de uma concepção absolutamente deformada e contaminadora do ser humano. E aqui cabe dizer que é justamente porque nos nossos dias a psicanálise, com uma inversão quase demoníaca, pôs em relevo uma primazia subpessoal do sexo, que é necessário opor a esta primazia uma outra, metafísica, da qual a  primeira é uma degradação: eis exatamente o objetivo fundamental deste livro.

Tudo isto se refere, pois, ao domínio da sexualidade corrente, diferenciada ou não, a qual, como já o dissemos, não deverá ser identificada de qualquer maneira com cada possível sexualidade. Com efeito, existe para nós um segundo domínio muito mais importante que corresponde às tradições que conheceram uma sacralização do sexo, uma utilização mágica sagrada, ritual ou mística da união sexual e até da própria orgia, tomando por vezes formas coletivas e institucionais (festas sazonais, prostituição sagrada, hierogamias, etc.). O material de que dispomos sobre este assunto é muito vasto e o fato de ter um amplo caráter retrospectivo não lhe retira qualquer valor. Também neste caso tudo depende de se ter ou não os conhecimentos adequados para que possa proceder-se a uma interpretação exata, não considerando todos estes testemunhos do modo como o fazem, quase sem exceção, os historiadores das religiões e os etnólogos: com o mesmo interesse «neutro» que se poderá ter por objetos de museus.

Este segundo domínio, com a sua fenomenologia relativa a uma sexualidade já não profana, é o próprio a admitir uma separação que podemos fazer corresponder à que existe entre o exoterismo e o esoterismo, entre os costumes gerais e a doutrina secreta. A parte as formas cujo molde mais conhecido é constituído pelo dionisismo, pelo tantrismo popular e pelos diversos cultos eróticos, existiram meios que não somente reconheceram a dimensão mais profunda do sexo mas formularam igualmente técnicas com finalidades muitas vezes pura e conscientemente iniciáticas: imaginou-se um regime especial de união sexual para conduzir a formas particulares de êxtase, para conseguir uma antecipação do desinibido. Existe igualmente documentação neste domínio especial, sendo bastante significativa a concordância assaz visível da doutrina e dos métodos nas várias tradições.

Considerando estes diversos domínios como parte de um todo em que se integram e se esclarecem mutuamente, aparecer-nos-ão suficientemente comprovados quer a realidade, quer o sentido de uma metafísica do sexo. Aquilo que os seres humanos conhecem intimamente quando se sentem atraídos um pelo outro e quando se fundem, será restituído ao conjunto mais vasto de que, por via de  regra, são parte integrante. Mercê de circunstâncias particulares, este livro representará pouco mais do que um simples esboço. Tivemos já ocasião de nos referirmos noutras obras à doutrina esotérica do andrógino assim como às práticas sexuais que têm por base esta doutrina. Para a parte mais atual, isto é, a pesquisa


no domínio do amor profano, deveríamos ter podido dispor de um material muito mais rico, que mesmo abstraindo das dificuldades acima apontadas  uma contingência muito pessoal nos impediu de recolher. Contudo esperamos que ele  seja ainda o bastante para indicar uma direção e dar uma idéia do conjunto.

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