domingo, 28 de maio de 2017

Metafisica do sexo - O sexo no mundo moderno



  Antes de abordarmos este assunto será talvez oportuno fazer umas breves considerações relativas à época em que o presente livro foi escrito. O papel que o sexo desempenha na civilização atual é sobejamente conhecido, e assim poder-se-ia, sem dúvida, falar atualmente duma espécie de obsessão do sexo. Em tempo algum a mulher e o sexo ocuparam tão insistentemente o primeiro plano. Dominam sob mil formas diversas a literatura, o teatro, o cinema, a publicidade, toda a vida prática contemporânea. A mulher é apresentada sob mil aspectos, para  constantemente atrair o homem e o intoxicar sexualmente. O strip-tease, costume americano trazido para a cena e oferecendo o espetáculo duma jovem que lentamente se despe, despojando-se uma a uma das peças de vestuário mais íntimas até ao mínimo necessário para manter nos espectadores a tensão própria a esse «complexo de espera», ou estado de suspense, que a nudez imediata, completa e impudica destruiria, tem o valor dum símbolo que resume tudo aquilo que nos  últimos períodos da civilização ocidental se produziu em todos os domínios sob o signo do sexo. Utilizaram-se para este efeito os recursos da técnica. Os tipos femininos mais fascinantes e excitantes já não são, como outrora, conhecidos apenas nos espaços restritos dos países onde vivem ou onde se encontram. Atualmente esses tipos são cuidadosamente selecionados e exibidos de todas as maneiras possíveis pelo cinema, as  revistas,  a  televisão, os  desenhos  animados, etc.,  e,  sob  a  forma  de atrizes,
«estrelas» e misses, tornam-se o centro dum erotismo cujo raio de ação é internacional e intercontinental, ao mesmo tempo que é coletiva a sua zona de influência, não povoando as camadas sociais que noutros tempos viviam dentro dos limites duma sexualidade normal e anódina.

Importa pôr em relevo o caráter de celebridade desta pandemia moderna do  sexo. Não se trata de impulsos mais violentos que se manifestam apenas no plano físico, dando origem, como em épocas passadas, a uma vida sexual exuberante, desinibida e até mesmo libertina. Hoje em dia o sexo impregnou, pelo contrário, a esfera psíquica, produzindo nela uma gravitação constante e insistente no sentido da mulher e do amor. Deste modo ter-se-á como pano de fundo, no plano mental, um erotismo que apresenta dois caracteres importantes: em primeiro lugar o caráter duma excitação difusa e crônica, quase que independente de toda a satisfação física concreta, visto perdurar como excitação psíquica; em segundo lugar, e em parte como conseqüência de tal, este erotismo poderá até coexistir com uma castidade aparente.   Relativamente   ao   primeiro   destes   dois   pontos,   constitui   um fato


característico pensar-se atualmente muito mais no sexo do que em épocas passadas, quando a vida sexual era muito menos livre e os costumes, limitando ainda mais  uma livre manifestação do amor físico, poderiam justamente levar a esperar essa intoxicação mental que é, afinal, típica dos nossos dias. Quanto ao segundo ponto, são muito significativas certas formas femininas de anestesia sexual e de castidade corrompida relacionadas com o que a psicanálise denomina variedades narcíseas da libido. Trata-se dessas jovens modernas para quem a exibição da nudez, a acentuação de tudo quanto as possa apresentar como motivo de atração para o homem, o culto do corpo, a maquiagem e tudo o mais, constituem o interesse principal, proporcionando-lhes um prazer transposto que é preferido ao prazer específico da experiência sexual normal e concreta, até provocar uma espécie de insensibilidade relativamente a esta experiência e, em certos casos mesmo, uma recusa neurótica (4) Estes tipos femininos deverão ser contados entre as fontes que em mais alto grau alimentam a atmosfera de luxúria cerebral crônica e difusa do nosso tempo.

Tolstoi disse um dia a Gorki: «Para um francês existe, acima de tudo, a mulher. É um povo extenuado e destrambelhado. Os médicos afirmam que todos os tísicos são sensuais.» Excluindo o caso dos franceses, permanece contudo verdadeiro o fato da propagação pandemica do interesse pelo sexo e pela mulher marcar cada era crepuscular, e deste fenômeno constituir, nos tempos modernos, um dos muitos indícios de que esta época representa precisamente a fase mais aguda e final dum processo de regressão. Mais não poderá fazer-se do que relembrar as idéias formuladas pela antiguidade clássica, baseadas numa analogia com o organismo humano. No homem, a cabeça, o peito e as partes inferiores do corpo são, respectivamente, os centros da vida intelectual e espiritual, dos impulsos da alma  que vão até à capacidade heróica e, finalmente, da vida do ventre do sexo. Correspondem-lhe três principais formas de interesse, três tipos humanos e, poder- se-ia mesmo acrescentar, três tipos de civilização. É evidente que, nos tempos  atuais, e por efeito duma regressão, se vive numa civilização em que o interesse predominante já não é de ordem intelectual ou espiritual, nem mesmo heróico ou qualquer outro relacionado com as manifestações superiores da afetividade, mas sim aquele, subpessoal, determinado pelo ventre e pelo sexo. Estamos, assim, sob a ameaça de se tornar verdadeira a frase infeliz dum grande poeta, para o qual seriam a fome e o amor que dariam forma à história. O ventre é, atualmente, a base de todas as lutas sociais e econômicas mais características e desastrosas. A sua contrapartida  está,  como  acima  mencionamos, na acentuada importância que tem nos nossos dias a mulher, o amor e o sexo.

A antiga tradição hindu das quatro idades do mundo oferece-nos, na sua formulação tântrica, um outro testemunho.

Uma das características fundamentais da última destas idades, daquela  que tomou o nome de idade obscura (kali-yuga), seria a de Kâlî ter sido nela   despertada  isto  é,  libertada inteiramente, ficando  a  época  marcada  pelo  seu  signo.  

A doutrina tântrica formula, a este respeito, uma ética e indica uma via que em épocas anteriores deveria ter-se condenado, ou então mantido secreta: a de transformar o veneno em remédio. Tal não sucede, porém, na atualidade, pois ao considerarmos o problema da civilização não devemos criar ilusões baseadas em perspectivas deste gênero. O leitor verificará mais adiante a que plano se referem as possibilidades que acabamos de assinalar. De momento podemos apenas reconhecer a pandemia do sexo como um dos sinais de caráter regressivo dos tempos atuais: pandemia cuja contrapartida natural é essa ginecocracia, essa proeminência tácita de tudo o que é direta ou indiretamente condicionado pelo elemento feminino e cujas manifestações na nossa civilização indicamos igualmente em outras ocasiões (5).
Neste contexto particular, aquilo que será posto em evidência relativamente à metafísica e à utilização do sexo, não poderá servir, contudo, senão para fixar alguns pontos de vista, conhecidos os quais teremos a revelação direta, verificada também neste domínio, da queda do nível interior do homem moderno.

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