As considerações que acabamos de tecer destinam-se a indicar o nível de intensidade da experiência erótica, o qual pode, se excluirmos as formas desagregadas ou incompletas desta experiência, apresentar verdadeiro interesse para o nosso estudo. Quanto ao restante, assim como tomamos posição contra a sexologia de orientação biológica apresentando uma crítica que será desenvolvida mais adiante, também, e para evitarmos qualquer equívoco, acusaremos de erro todos aqueles que, recentemente, quase que num regresso à polemica de Rousseau contra a «cultura» em nome da «natureza», se puseram a pregar uma espécie de nova religião naturalista do sexo e da carne. O representante mais característico desta tendência é D. H. Lawrence. O seu ponto de vista pode resumir-se nas palavras de Aldous Huxley, em «Ponto e Contraponto», postas na boca de Campion, o qual afirma não serem os apetites e os desejos «naturais» que tornam os homens tão bestiais acrescentando: «não, bestiais não é a palavra adequada, porque implica uma ofensa aos animais — digamos antes: humanamente maus e viciosos em demasia»: «é a imaginação, é o intelecto, são os princípios, a educação, a tradição. Deixai os instintos entregues a si próprios e eles pouco mal farão».
Os homens são, assim, considerados na sua maioria como pervertidos que estão «longe da norma central da humanidade» quer quando excitam a «carne», quer quando a renegam pelo espírito. Lawrence acrescentou por conta própria: «A minha religião é a fé no sangue e na carne, que são mais sensatos do que o intelecto (3).» O que é, todavia, singular é que Lawrence escrevesse palavras tão pouco banais como as seguintes: «Deus pai, o impenetrável, o desconhecido, nós trazemo-lo na carne e encontramo-lo na mulher. Ele é a porta pela qual entramos e saímos. Através dela voltamos ao Pai, mas fazemo-lo como aqueles que assistiram cegos e inconscientes à transfiguração»; existem, além disso, certas intuições acertadas relativamente à união que se realiza através do sangue. Aceitando o ponto de vista acima expresso cairemos, ao contrário, num equívoco desagradável, fazendo duma mutilação um ideal de salvação. Teve razão Péladan quando escreveu: «No amor, o realismo não vale mais do que na arte. A imitação da natureza, no plano erótico, torna-se a imitação do animal (4). Qualquer naturalismo tomado neste sentido só pode, com efeito, significar uma degradação, porque aquilo que para o homem, na sua condição de homem, deve ser considerado natural, não o é de forma alguma quando este termo se aplica aos animais; é-o, ao contrário, na conformidade ao seu tipo, ao lugar que lhe compete na hierarquia global dos seres. Assim, aquilo que no homem define o amor e o sexo é um conjunto de fatores complexos que em casos determinados compreende mesmo o que, julgado segundo um critério animal, poderá parecer perversão. Para o homem, e no sentido das palavras de Campion, ser natural equivale somente a desnaturar-se. O sexo tem no homem uma fisionomia específica.
Ele até já está liberto em larga medida — que é tanto maior quanto mais o indivíduo é diferenciado dos vínculos e dos períodos de cio que se observam na sexualidade animal (onde, de resto, e não sem razão, se verifica uma maior intensidade nas fêmeas do que nos machos). O homem pode, em qualquer momento, desejar e amar, e esta é uma característica natural do seu amor. Não é, de forma alguma, um fato artificial de «corrupção» derivado dum «desvio da natureza».
Dando um passo em frente, diremos que o fato de incluir o amor sexual nas necessidades físicas do homem deriva, igualmente, dum equívoco. Efetivamente, não existe nunca no homem um desejo sexual físico; o seu desejo é, na sua substância, sempre psíquico, e o desejo físico não passa de uma tradução e uma transição daquele. É nos indivíduos mais primitivos que este circuito se fecha rapidamente, pois na sua conseqüência está presente unicamente o ato terminal do processo, como que uma concupiscência carnal, acre e co-ativa, inequivocamente ligada a condicionalismos fisiológicos, e, em parte, também a condicionalismos de ordem genérica que estão em primeiro plano na sexualidade animal.
Convém, neste ponto, submeter a uma crítica adequada a mitologia que a sexologia corrente emprega ao falar num «instinto de reprodução», indicando este instinto como o fato primeiro de todo o erotismo. O instinto de conservação e o instinto de reprodução seriam as duas forças fundamentais ligadas à espécie, atuando tanto no homem como nos animais. O limite duma teoria insípida e desinteressante é demonstrado por esses biólogos e psicólogos positivistas que, como o próprio Morselli chegaram a subordinar um instinto ao outro, pensando que o indivíduo se alimenta e luta pela conservação somente porque deve reproduzir-se, sendo o fim supremo a «continuidade da vida universal».
Não se trata aqui de nos determos na análise do «instinto de conservação» e de demonstrar a sua relatividade, nem de lembrar quantos impulsos podem, no homem tomado como tal, neutralizar ou contradizer este instinto, a ponto de conduzir à sua destruição ou a comportamentos que dele se abstraem completamente e que nenhuma relação têm com as «finalidades da espécie». Em certos casos é precisamente o outro instinto, o pretenso instinto de reprodução no homem ou na mulher, que pode desempenhar, entre outros, este papel neutralizante ao impedir que se pense na própria saúde ou conservação.
Quanto ao «instinto de reprodução», representa uma explicação absolutamente abstrata do impulso sexual, dado que, psicologicamente, isto é, em relação aos dados imediatos da experiência individual vivida, essa explicação é destituída de qualquer fundamento. No homem, o instinto é um fato consciente. Mas o instinto de reprodução é inexistente como conteúdo da consciência; o momento «genésico» não figura, de modo algum, no desejo sexual como experiência, nem nos seus desenvolvimentos posteriores. O conhecimento de que o desejo sexual e o erotismo, quando conduzem à união do homem com a mulher, podem dar origem à procriação dum novo ser, não passa de um conhecimento «a posteriori», isto é, resulta dum exame exterior daquilo que a experiência, em geral, apresenta com grande freqüência em termos de correlações constantes: correlações no que se refere à fisiologia do ato sexual, como às suas conseqüências possíveis. Isto é confirmado pelo fato de algumas populações primitivas, que não estiveram sujeitas a qualquer exame desta ordem, terem atribuído o nascimento dum novo ser a causas sem qualquer relação com a união sexual. Está, todavia, perfeitamente certo daquilo que Klages escreveu:
«É um erro, é uma falsificação deliberada chamar instinto sexual ao instinto de reprodução. A reprodução é um efeito possível da atividade sexual, mas não está de modo algum compreendida na experiência vivida da excitação sexual. O animal ignora-a, só o homem a conhece» (6), tendo-a em mente não quando vive o instinto, mas quando o subordina a um fim. Será inútil recordar quão numerosos são os casos em que a fecundação da mulher amada não foi nem procurada nem de modo algum desejada. Ridículo seria, pois, se pretendêssemos associar o fator «genésico» às grandes figuras de amantes da história ou da arte, àquelas que são habitualmente consideradas como os modelos mais elevados do amor humano: Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, Paolo e Francesca, e outros, e nos fossem apresentados em situações de perfeita felicidade, com um filho, ou coroados até de numerosa prole. Um personagem de Barbey d'Aurevilly afirmava a propósito dum casal de amantes que nunca teve filhos: «Amavam-se de mais. O fogo devora, consome e nada produz.» Interrogada se teria pena de não ter filhos, a mulher respondeu: «Não, não quero! Os filhos só servem para as mulheres infelizes.»
A verdade encontra-se nestas palavras cheias de humor expressas por alguém:
«Ao acordar na presença de Eva, Adão não se põe a gritar como o obrigaria a fazer qualquer senador contemporâneo: "Esta é a mãe dos meus filhos, a deusa do meu lar!" E até quando o desejo de ter filhos representa um papel fundamental no estabelecimento de relações entre o homem e a mulher, verificamos que entram em jogo neste caso considerações baseadas na reflexão e na vida social, não sendo possível considerá-lo como um instinto a não ser no sentido muito especial, metafísico, de que adiante falaremos (cf. pág. 84 e ss.). Mesmo no caso em que um homem e uma mulher se unem para dar à luz um filho, não é decerto esta idéia que os obceca no momento da união, não é ela certamente que os excitará e exaltará no ato sexual (7). Poderá ser que no futuro as coisas se passem de outro modo e que, em homenagem à moral social, ou até à moral católica, se procure, na tendência que tem por limite a fecundação artificial, reduzir ou simplesmente eliminar o fator irracional e perturbador constituído pelo puro fato erótico: neste caso, porém, ainda menos se deverá falar de instinto. O fato verdadeiramente importante é a atração que nasce entre dois seres de sexo diferente, com todo o mistério e toda a metafísica que isso implica; é o desejo que um sente pelo outro, o impulso irresistível para a união e a posse, no qual atua, obscuramente — como já indicamos e como veremos mais em pormenor — um impulso ainda mais profundo. Em tudo isto a idéia de «reprodução» Os casos em que, juntamente com uma sacralização das uniões, se tendia nas civilizações antigas para uma fecundação desejada e consciente, ligada a estruturas simbólicas e a fórmulas evocatórias (como por exemplo na Índia e no Islã) constituem uma exceção. Voltaremos a este assunto em capítulos posteriores. Contudo, também nestes casos se faziam, no próprio mundo clássico, distinções não somente entre as uniões que tendiam para este fim e as outras, como também entre as mulheres a utilizar num caso e nos outros. São atribuídas a Demóstenes as seguintes palavras no discurso que proferiu contra Neera: «Temos as heteras para a voluptuosidade, as concubinas para a cura diária do corpo, as mulheres para nos darem filhos legítimos e nos cuidarem fielmente da casa.»
está totalmente excluída como fator de consciência.
Será oportuno citar neste contexto algumas observações pertinentes feitas por Solovieff. Este autor chamou a atenção para o erro em que incorre aquele que pensa ter o amor sexual a sua razão de ser precisamente na multiplicação da espécie, não servindo senão de veículo para tal. Muitos organismos, tanto do reino animal como do vegetal, multiplicam-se de modo assexuado: o fator sexual intervém não na multiplicação dos organismos em geral, mas sim na dos organismos superiores. Eis porque o «sentido da diferenciação sexual (e do amor sexual) não deve ser procurado na idéia da vida da espécie e da sua multiplicação, mas tão somente na idéia de organismo superior». E ainda «quanto mais se sobe na escala dos organismos, tanto mais decresce o seu poder de multiplicação e aumenta a força da atração sexual... Finalmente, no ser humano, a multiplicação verifica-se em menores proporções do que no restante reino animal, enquanto que o amor sexual atinge a máxima importância e intensidade,>. Parece, pois, que «o amor sexual e a multiplicação da espécie estão em razão inversa: quanto mais forte é um dos dois elementos, tanto mais fraco é o outro» — e ao considerarmos as duas extremidades da vida animal, se no limite inferior encontramos a multiplicação, a reprodução sem qualquer amor sexual, no limite superior, no vértice, encontrar-se-á um amor sexual cuja existência, como verificamos há pouco, é possível a par duma exclusão completa da reprodução em todas as formas de grande e intensa paixão (8). Verifica-se constantemente que «a paixão sexual comporta quase sempre um desvio do instinto... por outras palavras, nessa paixão a reprodução da espécie é, de fato, quase sempre evitada». Isto significa que se trata aqui de dois fatos diferentes, o primeiro dos quais não pode ser
apresentado como meio ou instrumento do outro. Nas suas formas típicas superiores o eros tem um caráter autônomo, imprevisível, cuja autonomia não fica prejudicada por tudo quanto, no domínio do amor físico, possa ser exigido materialmente para a sua ativação.
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